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Capítulo I
A diretoria do orfanato Coração Materno estava enfrentando dificuldade para cumprir a incumbência de encontrar uma família que adotasse três irmãos. As três crianças eram muito unidas e sofreriam com a separação, por isso o esforço para poupá-los de um desalento.
No pátio do orfanato, a diretora finalizava a conversa, preparando-se para a despedida da Assistente Social, que veio ao orfanato tratar do processo de adoção dos garotos.
— Sei que é quase impossível conseguir adoção dessas crianças por uma única família — comentou Maria Helena, diretora do orfanato, uma mulher charmosa de quarenta e cinco anos, com formação acadêmica na área social, — mas peço que olhe este processo com muito carinho — falou quase implorando, — essas crianças já foram muito castigadas pela vida.
— Entendo sua preocupação, Maria Helena, mas você sabe que uma adoção coletiva é muito mais difícil — comentou a assistente social. — Impormos essa condição retardará o processo, reduzindo ainda as chances de serem adotados e, com isso, podemos tirar deles a oportunidade de ganharem uma nova família — ponderou a interlocutora, uma mulher jovem, expressiva e empática.
— Compreendo sua preocupação, Marlene, mas se essas crianças forem condenadas a viver separadas, podem não suportar a dor da solidão, mesmo inseridas num ambiente familiar — disse Maria Helena solidária.
— Vamos precisar de muita tática para conversar com eles e fazê-los entender a necessidade de adiantar a adoção e ganharem uma família — Marlene falava, com prudência, diante da delicadeza do assunto e gesticulava realçando sua expressão de comprometimento com o problema.
— Mas vai ser difícil fazê-los entender — murmurou, compassivamente e entristecida, Maria Helena.
— Podemos garantir o vínculo deles sendo adotados por famílias de uma mesma cidade e que assumam o compromisso de promover o encontro entre eles com frequência — sugeriu Marlene, mesmo sabendo que também seria difícil. — É mais fácil do que encontrar uma única família interessada em adotar três crianças.
Elas conversavam tranquilamente sem desconfiar de que estivessem sendo observadas. Tiago, o mais velho dos garotos, que passeava pelo pátio, ao ouvir um pedaço da conversa, aproximou-se mais para entender o que estavam falando.
Aproveitou-se de seu anonimato para conhecer os motivos que trouxeram a Assistente Social à Instituição. Escondido entre as folhagens existentes no pátio, posicionou-se alguns metros atrás delas, numa distância que permitia ouvir o diálogo com clareza.
Tiago ficou escondido até que as duas deixassem o local e, depois, ele saiu ao encontro dos irmãos. Eles estavam na sala de atividades artísticas, executando suas tarefas de desenhos.
O assunto tratado pela diretora com a Assistente Social deixou Tiago muito inquieto e preocupado. Quando chegou perto dos irmãos, seu coração latejava de vontade de desabafar e, juntos, elaborarem um plano de fuga.
Pressentia que a irmandade estava ameaçada. Uma incerteza muito grande pairou sobre sua cabeça. Seus destinos estavam em jogo. Tinha consciência de que precisava tomar uma atitude.
Procurou controlar seus impulsos para não fazer nenhuma revelação, perto de outras crianças, que comprometesse sua intenção. Decidiu deixar a conversa para depois. Seria difícil suportar o tempo se arrastar pelo dia, mas à noite, depois que todos estivessem dormindo, conversariam com mais segurança. Porém, seu irmão Felipe, com dez anos de idade, percebeu a inquietação do irmão.
— O que aconteceu, Tiago? — perguntou ao perceber que o irmão estava perturbado.
— Nada! — Respondeu sem graça. — Tá tudo bem.
— Então ajuda aqui — Felipe pediu apontando para os objetos espalhados sobre a mesa a serem organizados.
Tiago tentava recompor sua postura, libertando-se dos pensamentos perturbadores para não preocupar o irmão, que não se convencera da normalidade professada por Tiago. Procurou ocupar-se com as atividades lúdicas, mas era sobressaltado pela lembrança das palavras de sentença ditas pela Assistente Social.
A possibilidade de separação afugentava sua mente e instigava seus pensamentos a buscar uma saída. Aquela situação fomentava o desespero e, na ânsia do temor, vislumbrava a fuga como única alternativa.
Passou o dia dedicando seu tempo livre na elaboração de um plano de fuga, tentando juntar seus pensamentos. Pensava em várias possibilidades. Resgatou da memória casos e cenas de filmes sobre fugas, incubando suas ideias.
Com facilidade, lembrava-se dos episódios dramáticos dos filmes, mas encontrava dificuldade para adaptá-los à estrutura do orfanato, esmorecendo-se. Não era fácil fazer essa combinação, por isso enfrentava um dilema terrível.
Se não conseguisse arquitetar um plano eficiente, o vínculo da irmandade seria esfacelado, destruindo a unidade entre eles. Sentiu um frio na espinha ao pensar nessa possibilidade, mas recuperou o entusiasmo para continuar insistindo na composição do plano.
Nesse ensaio de tentativas frustradas, Tiago acompanhou o arrastar pesado do sol percorrendo o ciclo do dia até se entregar ao colo da noite. Então chegou o momento certo para Tiago expor seus pensamentos para o irmão.
No dormitório, fez as orações com seu irmão caçula, Lucas, cuja cama ficava entre a sua e do irmão Felipe. Eles compartilhavam o espaço com mais oito crianças. Depois das orações, fez Lucas dormir, cumprindo sua rotina. Voltou para sua cama e deitou. Permaneceu em silêncio, fingindo estar adormecido, mas atento ao seu entorno. Sua audição era bem apurada e percebia o menor ruído à sua volta, tendo muita facilidade para se movimentar na escuridão.
Transcorridos alguns segundos, certificou-se de que todos dormiam profundamente. Tiago se deslocou até a cama de Felipe e, cuidadosamente, o acordou, tapando sua boca para abafar seu grito histérico de espanto.
— Felipe! Felipe! — sussurrava em seu ouvido. — Acorde, é seu irmão, precisamos conversar.
— Eu sabia que você não estava legal — comentou.
— Temos que fugir daqui urgente, irmão! — desabafou sem rodeio.
— Não podemos fazer isso agora que eles estão arrumando uma família para nós…
— Eles vão nos separar, Felipe — retrucou Tiago, com veemência, de rosto colado na face do irmão.
— Não! — contestou, esforçando-se para manter baixo o seu de tom voz.
— Sim! Eles querem nos separar. Eu ouvi a diretora conversando com a assistente social — sustentou Tiago.
— Não, você está enganado, meu irmão — negou Felipe convicto. — A diretora prometeu que só autoriza a adoção quando encontrar uma família que aceite os três.
— Eles estão nos enganando, Felipe, acredite! — Clamou com eloquência. — Eu os ouvi falando que estão preparando os encaminhamentos individualizados porque é mais fácil. Primeiro será o Lucas, que já está sendo esperado por uma família, e depois você.
— O que você está pensando em fazer, irmão? — A voz de Felipe soou abafada por causa do esforço para prender as cordas vocais. Foi dominado por uma vontade de chorar, formando um nó em sua garganta.
— Temos que fugir — insistiu Tiago com firmeza. — Eles temiam a separação.
— Mas vamos para onde? — disse Felipe, apoiando os cotovelos no colchão e puxando seu corpanzil para trás e encostando-se à cabeceira da cama. Sua preocupação tinha sentido. — Não temos casa e nem parentes — desabafou.
— Aqui temos tudo isso, mas não temos família e estamos prestes a perder o pouco que restou de nossa família — argumentou Tiago.
— E nossas aulas de música? — A sonoridade de sua voz demonstrava sua paixão pela música. — Nossa fuga vai interromper todo o trabalho — queixou-se. — A professora falou que estamos muito bem.
— Nós já sabemos o necessário e, se ficarmos aqui, nosso talento não terá valor nenhum — persistia Tiago. — Aqui ninguém vai nos dar oportunidade.
— Não podemos abandonar nossos sonhos mano — enfatizou Felipe falando com a voz empolada.
— Eles não se importam com nossos sonhos, Felipe. Eles querem nos separar — afirmou Tiago categoricamente.
— Tenho medo! — declarou Felipe.
Uma criança se mexeu na cama ao lado de Felipe, obrigando os dois a se calarem. O menino se aquietou e, naquele momento, ouviram passos no corredor de acesso ao dormitório. Rapidamente Tiago voltou para seu aposento e se aninhou no colchão, fingindo dormir.
Embaixo do lençol, somente com uma parte da cabeça descoberta e com os ouvidos bem aguçados, ficou atento ao ambiente. Ouviu o barulho da fechadura destravando na porta. Abriu os olhos levemente e viu a luz fosca penetrar vagarosamente no dormitório, desenhando um clarão retangular no escuro da noite, espesso no quarto, por onde um vulto se projetou.
A sombra foi ganhando forma humana à medida que adentrava, diante dos olhos semicerrados de Tiago, que reconheceu a silhueta. Era uma das guardiãs, fazendo a ronda noturna.
Como de costume, a vigilante não demorou. Supervisionou todo o local, passando por todas as camas para verificar se todos estavam dormindo. Nada de anormal foi detectado. Após sua retirada, Tiago escutou o ranger leve das dobradiças, seguido do estalido da fechadura, desfazendo o desenho retangular luminoso.
O recinto se esvaziou de toda a luz e o local se transformou novamente num manto negro e denso. Tiago deixou sua cama sorrateiramente e foi em direção à cama de Felipe para continuar a conversa.